Tuesday, December 04, 2007

Banda D'alem - Crónica de Alberto Artur Sarmento (1878-1953)

"Em Machico
Correm chuviscos á desgarrada, assoprados das gargantas da serra para dentro do valle, onde veem brincar, peneirando agulhinas d'agua que se espetam de vidro ephemeras, por toda a parte.
Esta gente pouco se lhe dá. Á porta d'aquella choça, uma velha empunha a bojuda roca, mordendo com gana uma aresta de estoupa, que lhe ia engrossar o fio, cuspinhando de zangada, emquanto um garotinho que mal engatinha, faz grande berrata, coitado, por se haver estendido ao comprido na calçada humedecida pelo orvalho.
A avó nem deu por isso, attenta sómente ao fuso, que dança frenettico e empertigado entre os callosos dedos, gordo de linho, e já de suffocada a pobre creança n'um convulsivo chôro, vermelha como a tumefacção das gengivas onde lhe aponta a custo, o unigenito dente, esperneia e grita aos soluções, levantando muito alto os bracinhos.
Debaixo d'uma tosca latada fronteira um cão lazarento esmordinhaça as pulgas, penteando a dentuça pelo lombo; duas raparigas sentadas no chão, de pés cruzados, catam-se tambem, reclinando uma a cabeça sobre a perna grossa da outra. Vae alli grande caçada: um estralejar de entre-unhas limpas de continuo ao tronco d'uma parreira á maneira d'um gato que as quer afiar. É aquillo o prefacio das bordadeiras, livrando-se d'ess'arte da primeira levedura de parasitas antes de começarem os garanitos e o bastido que as inhibe de coçar a gordurosa cabeça, sob pena de ficar manchado o seu primoroso trabalho.
O irmãosito chora e torna a chorar, molhadinho de chuviscos, porém ninguem lhe acode, e ellas continuam na sua tarefa, olham e não veem, - até que esganiçadas, avisam tão somente:
- Mãe, olhe o menino:
A dentro da sordida cabana, o pae que voltou do mar, espojado a um canto, no delirio d'uma ponche reforçada, vociféra, de quando em quanto, pragas surdas em roncos de suino, escouceando gaiados imaginarios que lhe veem morder os tornozelos, emquanto as moscas sobre a cara, salteadas como passa "corintho" d'um bôlo barato, projectan-lhe um ataque em regra aos cantos da bocca onde a saliva gommosa, em fermento, guarda ainda os residuos do assucar mascavado.
De novo se ouvem as raparigas.
- Mãe, olhe o menino!
Então a pobre mãe, uma moura do trabalho, com o cabello em desalinho, olhos pisados mais de chorar que a fumaça da lareira onde refervem as batatas, sahiu apressada pela porta baixa d'um telheiro que serve de cosinha, e corre a levantar a creança apenas por um braço, dando-lhe em seguida, sem amor, duas palmadas no assento derroxido pelo frio, para o ensinar a não cahir para a outra vez:
Eu disse, só para comigo:
Pobre pequeno. O senhor dos Milagres de Machico te faça melhor que teu pae."
In Alberto Artur Sarmento - As Migalhas (Contos e Esbocetos), Funchal, 1912
Mantivemos a grafia original. Esta crónica é eloquente ao mostrar o quotidiano das populações madeirenses, especialmente das que viviam em zonas ribeirinhas, até um passado muito recente, talvez ainda vivo. Nesse aspecto, diz mais que muitos estudos historiográficos sobre a ilha da Madeira.

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